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terça-feira, 19 de abril de 2016

Relato de (des)esperança

Nasci no ano de 1984, um ano antes do 'fim da ditadura' no Brasil, não convivi de perto com os seus horrores e, até bem pouco tempo, o máximo de contato que tinha com o período foi por meio de leituras de livros de História. Eis que, em abril de 2014, faço minha inscrição no Sesc Dramaturgia - Leituras em Cena, cujo tema era "50 Anos da Ditadura Militar - Dramaturgia da Resistência". Eu acabava de iniciar as aulas de teatro e essa seria minha primeira apresentação, o texto era Nem Mesmo Todo o Oceano, de Alcione Araújo. Para além da emoção de estar 'no palco' pela primeira vez, o projeto mudou para sempre meu sentimento com relação ao período de trevas brasileiro.
Talvez todos já tenhamos conhecimento de que atores façam laboratórios para seus personagens, é o que atribui verdade à atuação, é o que convence quem assiste e é o que mexe, profundamente, com o ator. O desafio a que me propus era o de interpretar um médico que se tornou algoz em meio ao esgoto do sistema ditatorial vigente. Assisti a documentários, estudei, li bastante sobre o que se praticava em nome da manutenção da ordem no país.


A imersão me deixou absolutamente chocado. Não que já não tivesse ideia do que ocorria, mas se materializava para mim, naquele momento, toda a violência à qual os opositores do governo eram submetidos. Fiquei ainda mais estarrecido com os relatos das técnicas de tortura aplicadas às mulheres. A humilhação, a violação do corpo, o estupro como forma correcional me fizeram sucumbir à tristeza, à indignação, ao nojo. A mistura de sentimentos que me acometeram era diferente de tudo o que eu já havia vivenciado. Ainda hoje, ao lembrar desta experiência, falta a coordenação motora para continuar digitando, os dedos tremem, o nó na garganta é inevitável. Segue uma longa pausa, recobro a normalidade - ou pelo menos, parte dela - e posso voltar ao assunto.
Eu, que não vivi os horrores da ditadura, emociono-me, revolto-me. Eu, que não passei pelos porões dos DOPS, jamais teria a pretensão de mensurar o sentimento de quem de fato sentiu a tortura na pele ao presenciar uma homenagem ao mais abjeto torturador - se é possível hierarquizar abjeção, nesse caso -, coronel Brilhante Ustra, em plena Câmara dos Deputados, por um político boçal e fascista. Eu não vivi os horrores da ditadura, mas tenho empatia. Não é preciso viver os horrores da ditadura para ter conhecimento histórico e cultura, e conhecimento histórico e cultura mudam a forma de ver o mundo, mudam a forma de sentir o mundo, mudam a forma de se posicionar no mundo.
Cada argumento que leio em prol da ditadura militar, os posicionamentos radicais e violentos vociferados nas redes sociais, fazem com que eu perca um pouquinho de fé nesse país em que vivemos. Aí eu paro, reflito e percebo que o que me consola é que também há aqueles que defendem a justiça, que defendem a democracia, que defendem a liberdade, que, assim como eu, acham que a evolução - ainda que penosa para alguns - seja possível. O que me consola é saber que houve, há e sempre haverá essas pessoas. É só o que me consola, é só o que me faz não desistir de um país possível. Por enquanto.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A História de Um Dia Sem Fim

Sabe quando você passa o dia todo certo de que está doente? Umas sensações estranhas, inexplicáveis, diferentes. Um dia daqueles que você quer que termine e apenas termine, sem grandes desfechos. Pois é, hoje foi desses dias. Não é raro, no entanto, que não sejamos agraciados com a realização de nossos desejos. E o que parecia só um dia ruim, passou a ser um dos mais atípicos por que já passei.

Ainda no começo da noite sou surpreendido por uma voz que vem da rua gritando por socorro. Olho pela janela do apartamento, é uma mulher desesperada pois acaba de ser assaltada. Dá tempo de ver os ladrões correndo e passando pela porta do meu prédio. É assustador quando você se dá conta de que está totalmente desprotegido e sujeito a tantas coisas nas quais muitas vezes nem pensa. Mas elas são reais, esses riscos são palpáveis e quando você está sensibilizado - por isso falei do meu sentimento ao longo do dia - o medo se potencializa. A mulher é amparada pelos vizinhos da casa em frente, mas eu tremo e assim fico por vários minutos. Nervoso, meu coração palpita, pelo simples fato de que ainda não entendo a violência como algo normal. Demoro algum tempo para me restabelecer.   

Resolvo me distrair, parar de pensar. Ligo a TV. Vejo novelas, um pedaço do programa da Xuxa, jogo no Facebook. Consigo me descontrair um pouco e relaxar. Entretanto, dormir não está fácil, tampouco ficar totalmente acordado. Solução: Youtube. Sempre recorro aos clipes de músicas que gosto para aliviar um pouco a barra quando me sinto incomodado.

São 2h40min da madrugada. Eu com os fones de ouvido. Ouço um barulho. Tiro os fones. Barulho na porta da sala. Parece alguém querendo entrar, forçando a fechadura. A campainha toca. Outra vez. Mais um toque. Tomo coragem e resolvo checar o que acontece, de perto. Do lado de dentro pergunto quem é. O homem, de voz rouca e baixa, responde que é um amigo que entrou por engano e não consegue sair. Acho estranho. Ele pede que eu abra a porta para ajudá-lo. Nego. Ele insiste que não é louco e repete que não consegue sair. Oriento que ele deve chamar o elevador e descer. Ele parece nervoso, confuso e continua a pedir que eu abra a porta. Volto a afirmar, agora de forma mais ríspida, que não posso atendê-lo a essa hora da noite e torno a lhe dar a mesma orientação. Ele chama o elevador e parece descer. Permaneço na sala, próximo à porta, para conferir se não há mais barulho no corredor. Silêncio fúnebre.

O silêncio agora parece ecoar. Junto com ele os questionamentos germinam e não me deixam dormir. Será que fui rude? E se realmente era alguém precisando de ajuda? Devia eu ter aberto a porta? Até que ponto o medo da violência vai me assombrar a ponto de primeiro desconfiar de qualquer um, de qualquer história? 

Agora, pressuponho, não conseguirei dormir. Sabem, sou daqueles que não dormem quando pensam. E nesse momento, dentro da minha mente, imperam o fúnebre silêncio do corredor e o caos das histéricas perguntas sem resposta.