quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Se Todos Fossem No Mundo Iguais a Você


Para quem não sabe, meu avô era pastor da Assembleia de Deus. Sim, ele era PASTOR. A caixa alta é porque talvez ele tenha sido o último, ou único, pastor que conheci. Daqueles que se preocupavam com a comunidade, meu avô era querido por onde passava. Extremamente querido. Por onde estivesse deixava sua marca. Fosse porque distribuía pão e leite antes de o dia amanhecer à comunidade carente, fosse pelos lanches comunitários que oferecia, fosse porque devolvia o dízimo àqueles que sabia que não tinham condições - nesse caso, nunca conheci outro que o fizesse. Daqueles que não enriquecem e daqueles que não se envolvem com política e eleições. Pasmem!

Sempre que estamos às vésperas de eleição, em período de campanha eleitoral, a lembrança mais forte que tenho é a dele. Lembro-me de suas palavras firmes com relação à utilização do espaço religioso: "Irmãos, igreja não é palanque! Púlpito é para pregação do evangelho e não para campanha política!". Alguns o compreendiam, outros o achavam radical e ainda havia os que o achavam ingênuo pois não se aproveitava de sua influência. Ele se recusava a fazer campanha, recusava-se a ser candidato - embora procurado por diversos partidos. Meu avô acreditava que não se deveria misturar política e religião, não porque não se devesse discutir, mas porque a mistura geraria uma confusão de proporções desastrosas.

Meu avô, José Francisco Marques (Vozinho José)


Entre tantos serviços que costumava oferecer à comunidade, destacou-se durante alguns anos a escola primária que havia montado no Jardim Nova Esperança, aqui em Goiânia. O Instituto Evangélico Dona Iraci, que levava o nome de sua mãe, sobrevivia graças a um convênio com a Prefeitura de Goiânia e atendia a centenas de crianças. Figurou o instituto durante esses anos como uma das melhores escolas da região, inclusive. Acontece que a vida nem sempre é justa, o tal sistema político funciona como um rolo compressor. Existe um episódio em sua vida que ilustra o peso dessa postura de não envolvimento com partidos políticos e campanhas eleitorais.

Eis que, durante o seu funcionamento, o instituto sofreu uma forte ameaça política. "Ou o senhor apoia o candidato, ou, se não apoiar e ele ganhar, cortamos o convênio". Essas foram as duras palavras dos responsáveis pela campanha do candidato à prefeitura, Darci Accorsi, do PT. Acontece que meu avô nunca se sujeitou a ameaças. Ele não apoiou. O candidato venceu. O convênio, conforme prometido, foi cortado. A escola teve de fechar. A ferida para toda a família talvez nunca feche, são sempre vivas para nós a tristeza no olhar e a dor que meu avô sentia ao ter que comunicar o fechamento às famílias. Centenas de crianças remanejadas, professores e outros funcionários, idem. Foi altíssimo o preço que meu avô pagou por sua convicção de que seria maléfico que sua influência religiosa e social tivesse ingerência na escolha política da comunidade. Ele arriscou ter o seu sonho de educação sepultado, pois sabia que aquele seria um caminho sem volta. Ele sabia que, se sucumbisse àquela ameaça política, se tornaria refém para sempre daquela prática.

Muita gente não entendeu sua atitude, muita gente ainda não entende. Ocorre que meu avô era pastor e pastor ele escolheu ser - e foi - até os últimos dias da sua vida.


terça-feira, 19 de abril de 2016

Relato de (des)esperança

Nasci no ano de 1984, um ano antes do 'fim da ditadura' no Brasil, não convivi de perto com os seus horrores e, até bem pouco tempo, o máximo de contato que tinha com o período foi por meio de leituras de livros de História. Eis que, em abril de 2014, faço minha inscrição no Sesc Dramaturgia - Leituras em Cena, cujo tema era "50 Anos da Ditadura Militar - Dramaturgia da Resistência". Eu acabava de iniciar as aulas de teatro e essa seria minha primeira apresentação, o texto era Nem Mesmo Todo o Oceano, de Alcione Araújo. Para além da emoção de estar 'no palco' pela primeira vez, o projeto mudou para sempre meu sentimento com relação ao período de trevas brasileiro.
Talvez todos já tenhamos conhecimento de que atores façam laboratórios para seus personagens, é o que atribui verdade à atuação, é o que convence quem assiste e é o que mexe, profundamente, com o ator. O desafio a que me propus era o de interpretar um médico que se tornou algoz em meio ao esgoto do sistema ditatorial vigente. Assisti a documentários, estudei, li bastante sobre o que se praticava em nome da manutenção da ordem no país.


A imersão me deixou absolutamente chocado. Não que já não tivesse ideia do que ocorria, mas se materializava para mim, naquele momento, toda a violência à qual os opositores do governo eram submetidos. Fiquei ainda mais estarrecido com os relatos das técnicas de tortura aplicadas às mulheres. A humilhação, a violação do corpo, o estupro como forma correcional me fizeram sucumbir à tristeza, à indignação, ao nojo. A mistura de sentimentos que me acometeram era diferente de tudo o que eu já havia vivenciado. Ainda hoje, ao lembrar desta experiência, falta a coordenação motora para continuar digitando, os dedos tremem, o nó na garganta é inevitável. Segue uma longa pausa, recobro a normalidade - ou pelo menos, parte dela - e posso voltar ao assunto.
Eu, que não vivi os horrores da ditadura, emociono-me, revolto-me. Eu, que não passei pelos porões dos DOPS, jamais teria a pretensão de mensurar o sentimento de quem de fato sentiu a tortura na pele ao presenciar uma homenagem ao mais abjeto torturador - se é possível hierarquizar abjeção, nesse caso -, coronel Brilhante Ustra, em plena Câmara dos Deputados, por um político boçal e fascista. Eu não vivi os horrores da ditadura, mas tenho empatia. Não é preciso viver os horrores da ditadura para ter conhecimento histórico e cultura, e conhecimento histórico e cultura mudam a forma de ver o mundo, mudam a forma de sentir o mundo, mudam a forma de se posicionar no mundo.
Cada argumento que leio em prol da ditadura militar, os posicionamentos radicais e violentos vociferados nas redes sociais, fazem com que eu perca um pouquinho de fé nesse país em que vivemos. Aí eu paro, reflito e percebo que o que me consola é que também há aqueles que defendem a justiça, que defendem a democracia, que defendem a liberdade, que, assim como eu, acham que a evolução - ainda que penosa para alguns - seja possível. O que me consola é saber que houve, há e sempre haverá essas pessoas. É só o que me consola, é só o que me faz não desistir de um país possível. Por enquanto.