Nasci no ano de 1984, um ano antes do 'fim da ditadura' no Brasil, não convivi de perto com os seus horrores e, até bem pouco tempo, o máximo de contato que tinha com o período foi por meio de leituras de livros de História. Eis que, em abril de 2014, faço minha inscrição no Sesc Dramaturgia - Leituras em Cena, cujo tema era "50 Anos da Ditadura Militar - Dramaturgia da Resistência". Eu acabava de iniciar as aulas de teatro e essa seria minha primeira apresentação, o texto era Nem Mesmo Todo o Oceano, de Alcione Araújo. Para além da emoção de estar 'no palco' pela primeira vez, o projeto mudou para sempre meu sentimento com relação ao período de trevas brasileiro.
Talvez todos já tenhamos conhecimento de que atores façam laboratórios para seus personagens, é o que atribui verdade à atuação, é o que convence quem assiste e é o que mexe, profundamente, com o ator. O desafio a que me propus era o de interpretar um médico que se tornou algoz em meio ao esgoto do sistema ditatorial vigente. Assisti a documentários, estudei, li bastante sobre o que se praticava em nome da manutenção da ordem no país.
A imersão me deixou absolutamente chocado. Não que já não tivesse ideia do que ocorria, mas se materializava para mim, naquele momento, toda a violência à qual os opositores do governo eram submetidos. Fiquei ainda mais estarrecido com os relatos das técnicas de tortura aplicadas às mulheres. A humilhação, a violação do corpo, o estupro como forma correcional me fizeram sucumbir à tristeza, à indignação, ao nojo. A mistura de sentimentos que me acometeram era diferente de tudo o que eu já havia vivenciado. Ainda hoje, ao lembrar desta experiência, falta a coordenação motora para continuar digitando, os dedos tremem, o nó na garganta é inevitável. Segue uma longa pausa, recobro a normalidade - ou pelo menos, parte dela - e posso voltar ao assunto.
Eu, que não vivi os horrores da ditadura, emociono-me, revolto-me. Eu, que não passei pelos porões dos DOPS, jamais teria a pretensão de mensurar o sentimento de quem de fato sentiu a tortura na pele ao presenciar uma homenagem ao mais abjeto torturador - se é possível hierarquizar abjeção, nesse caso -, coronel Brilhante Ustra, em plena Câmara dos Deputados, por um político boçal e fascista. Eu não vivi os horrores da ditadura, mas tenho empatia. Não é preciso viver os horrores da ditadura para ter conhecimento histórico e cultura, e conhecimento histórico e cultura mudam a forma de ver o mundo, mudam a forma de sentir o mundo, mudam a forma de se posicionar no mundo.
Cada argumento que leio em prol da ditadura militar, os posicionamentos radicais e violentos vociferados nas redes sociais, fazem com que eu perca um pouquinho de fé nesse país em que vivemos. Aí eu paro, reflito e percebo que o que me consola é que também há aqueles que defendem a justiça, que defendem a democracia, que defendem a liberdade, que, assim como eu, acham que a evolução - ainda que penosa para alguns - seja possível. O que me consola é saber que houve, há e sempre haverá essas pessoas. É só o que me consola, é só o que me faz não desistir de um país possível. Por enquanto.